Tuesday, July 10, 2007

O primado da objetividade e a decadência espiritual

Imagem: Sistina - um clássico - o que ainda há de divino no homem contemporâneo?

A palavra-chave para definir o mundo contemporâneo é: objetividade. Este é o primado que permeia nossas vidas como um imperativo categórico: é preciso construir, ganhar vencer. Este é o único parâmetro aplicável à saúde mental e para avaliar a importância de cada um. Trata-se de um mundo superpopulado, onde a cada momento diminui o valor do indivíduo. Neste contexto, só há o reconhecimento do sujeito na fama, na objetividade e no poder. Todos os outros valores ficam derrogados em virtude destes. O afeto, a solidariedade, por outro lado, são tais quais a virtude inútil da filosofia e a opção pelo autoconhecimento e reflexão em detrimento da objetividade leva-os a tornarem-se valores anacrônicos. Se pensarmos o problema da política atual, veremos que a questão não é meramente econômica, mas espiritual. Se “amar ao próximo como a si mesmo” fosse um imperativo categórico, o mundo não seria o que é hoje.

Num mundo de objetividade, girar a roda é o que interessa, a isso os yogins chamam de Samsara – a roda da vida – onde no movimento da roda perdemos a noção de nossas instâncias. Cultura de massa, mídia, moda, são faces da objetividade que a todos pasteuriza na busca da objetivação do consumo. Se todos consomem o mesmo a produção em escala pode valer-se da facilidade de sempre repetir o mesmo. É neste mundo sem face que o Ego se impõe como necessidade de sobrevivência: num mundo em que o cidadão médio não tem voz, a necessidade de se fazer ouvir é imensa, é o contraponto natural à solidão da massa. Mas quando se quer ser diferente apenas para fazer valer a própria voz estamos apenas sendo iguais. Iguais no desejo de poder, iguais no desejo de destaque e, com isso, escravos da objetividade. O poder da sociedade deixa pouco espaço para escolhas, querer ser diferente é apenas uma outra forma de querer ser igual.

As relações familiares, neste contexto, precisam se adaptar à necessidade da objetividade. Sendo assim criamos nossos filhos na expectativa de que eles sejam iguais. A diferença é anti-objetiva, é hedionda. Todos sabemos que a verdadeira diferença machuca. O medo da dor é o que nos leva a procurar que a nossa família seja sempre igual às outras. Mas a família moderna não é apenas repetição de padrões, é um padrão que se desagrega por força da objetividade. Cada membro da família ocupa obsessivamente seu tempo com a produção, deixando pouco tempo para a afeição. Afeição – tomar a face do outro – é artigo raro numa sociedade onde o Ego é a força fundamental em direção à objetividade. È a grande mola motora que nos garante a satisfação de nossos desejos. O culto ao Ego é o culto ao prazer, á objetividade. A sociedade privilegia o Ego na medida em que é ele que se sobrepõe aos outros exigindo um culto a si mesmo. Este culto é fundamental para a mídia e para a objetividade. É neste culto que prevalece o desejo de ganhar, consumir, se destacar, prevalecer. Prevalecer sobre o outro é a tônica do Ego e da objetividade, contrapartida inevitável ao único imperativo categórico possível: “amar ao próximo como a si mesmo”.

Pais, filhos, amigos, amantes, já não são mais capazes de realmente se verem. A quantidade de informações sobre quem somos e o que são os outros, ditadas por modas, hábitos, imagens, sinais, é tão grande que a capacidade de ver é inexistente. Os outros são nossos desejos, projeções, imagens. Quando por um acaso o outro frustra nossa imagem dele temos um choque: quem é esse estranho? Nesta medida há apenas um sujeito que é o Ego, ensimesmado em uma prisão sem retorno. Se a satisfação imediata das necessidades é a essência da sociedade, aquele que as frustra é seu inimigo. Neste contexto a criação de filhos é uma relação esquizofrênica. É preciso conter os impulsos de uma criança sem reprimi-la. A sociedade, com a aceleração de seu progresso, passa a ser a cada dia mais permissiva com as crianças, pois que isso é naturalmente uma exigência para que estes tornem-se competitivos. Portanto, não podem ser sem limites a ponto de não suportar frustrações, nem fracos a ponto de não ter ambições. Valores espirituais? Onde há espaço para isso num mundo assim?

Neste momento podemos sentir uma sensação bastante heideggeriana – o homem é indissociável de mundo – não podemos separá-lo de seu contexto. Neste sentido a conclusão é óbvia: o mundo segue um rumo sem solução, uma implosão onde uma imensidade de Egos incomunicáveis acaba por se destruir. Uma Guerra em tal mundo não é só provável, é inevitável.

Existiria solução para tal conjuntura? A massificação da cultura tornou-a de má qualidade, e aqui tomamos uma posição diferente de Christopher Lasch, que acreditava que esta massificação era por causa das necessidades do capitalismo, um problema de cima para baixo, embora acreditemos que isso ocorra pela necessidade de se nivelar a produção cultural de grande escala por baixo.

Neste ponto encontramos nossa cisão com o Comunismo. Se por um lado um mundo mais solidário é desejável, por outro lado o mérito é insofismável. Algumas pessoas estudam 14 horas por dia e outras nenhuma. Poderemos realmente equipará-las? Não advogamos que haja uma diferença de inteligência, mas apenas uma de vontade. A questão da dissolução da sociedade atual passa pela superpopulação e a diminuição do valor de cada um, passa pela concentração de riqueza e passa, principalmente pela unificação da cultura em torno do culto às massas. E esse é o perigo fundamental. Se todos não desejassem essa mesma objetividade, não haveria essa necessidade do acúmulo de riqueza que gera a sua contrapartida numa pobreza. As multidões que partem para as cidades partem em busca do sucesso, da fama, do dinheiro. Nem todos passavam fome no campo, muitos viviam, em vários países e épocas, em suas terras e levando uma vida modesta, mas desejando a cidade e os outros, destacar-se dos outros, ser reconhecido pelos outros. Ser reconhecido é a contrapartida ao medo da solidão. É este o medo que a todos impulsiona em direção à sociedade.

Se a sociedade é a força que se impõe na contrapartida do que verdadeiramente somos, a solução pode ser remar na direção contrária à massa e à cultura que ela produz. Onde vemos multidões busquemos o recolhimento. Onde vemos leitura fácil, procuremos os clássicos. Tenho visto constantemente a leitura dos clássicos ser rejeitada por ser difícil, elitista. Tudo o que é difícil é anti-objetivo. Elitista é tudo aquilo que é longe do povo, mas será esse sempre um demérito? Neste ponto Ortega Y Gasset faz um excelente contrapartida a Christopher Lasch: não se pode popularizar a cultura sem esperar com isso um decréscimo considerável da educação e da sofisticação. A massificação da sociedade diminuiu a qualidade cultural e não há como negar isso. A cultura de massa espera ser compreendida por todos e nem todos têm a mesma capacidade de compreensão. A vida social de hoje desestimula a leitura. Raros os jovens hoje que se atreveriam a escarafunchar os sete volumes de Proust. Para quê se eles podem encontrar vídeos fáceis no youtube e informação abundante no cinema. Recolhimento, leitura, solidão, reflexão, devem deixar de ser vistos como chatos ou “coisa de gente chata”. Isso seria um bom primeiro passo.

O encontro do homem consigo mesmo passa por uma desintoxicação. Nem tudo na cultura é “droga”, muita coisa é fundamento. Separar o joio do trigo é um passo importante: separar espiritualidade de auto-ajuda (o ápice da objetividade aplicada), a pseudo-ciência da ciência, o alimento para o espírito da distração. Neste processo o outro ocupa função decisiva. Deve surgir como encontro e nunca como necessidade. Deve ser aceito, pois julgar é oprimir o outro com a nossa vontade. Só está em paz aquele que aceita as coisas como elas são, sem desejar que sejam diferentes. Só está em paz aquele que supera a própria vontade. Essa é a essência do homem civilizado, o que nos distingue dos animais e é aquilo que pode, finalmente, nos redimir enquanto civilização.

Como vocês podem ver, ainda não me enforquei. Não sei se volto a falar de política, não enquanto o meu trauma com os impostos não passar.

Oriane

6 comments:

Clau said...

Oriane, estou montando outro blog: www.somosinevitaveis.wordpress.com, mas ainda é segredo, vou terminar de montar as páginas antes de divulgá-lo.

Acho que vai identificar-se com o assunto.

Passe lá qdo puder.

Bjs

Anonymous said...

Oriane, já respondi seu email.

Gostei muito do texto.

Parece que há uma espécie de revolta contra a realidade, um esforço para desordená-la. Não há a compreensão de que tudo tem o seu lugar. Parece que as pessoas vêm se esforçando para ter o pior como medida de todas as coisas. É o império da desmedida.

Nenhum de nós espera que o mundo um dia venha a ser composto só de sacerdotes ou filósofos. Este mundo, não... O problema é que o feio quer se impor como belo; o mau, como bom; o vulgar, como nobre; o mais medíocre convidado se lança sobre o melhor lugar à mesa. As pessoas deixam de reconhecer que há a nobreza, há a vulgaridade, e entre elas há inúmeros pontos que podem ser ocupados. Se não somos todos nobres, nosso dever deveria ser buscar alcançar o ponto mais alto de nobreza que nossa natureza permitir -- mas o que se faz é louvar a própria vulgaridade.

Todo mundo quer tudo hoje, imediatamente, sem se perguntar sobre como as coisas aparecem no mundo. Parecem crer que a realidade se dobra as suas veleidades. A questão das cotas nas universidades, por exemplo: será que é tão difícil compreender que a universidade não é para todos, mas para os que se destacarem? Uns vão nascer feios, outros pobres, outros burros etc. Há incontáveis ricos burros que nunca vão conseguir ingressar numa boa universidade. Ao pobre inteligente cabe superar sua pobreza e manter o rico burro afastado dos melhores lugares. O rico burro chora porque é burro? Por que então o pobre inteligente deve choramingar, em vez de se esforçar para vencer os obstáculos? Se o lugar dele é entre os melhores, ele deve ir buscá-lo. No entanto, se o lugar dele não é entre os melhores, ele precisa reconhecer isso e fazer algo de acordo com suas possibilidades intelectuais. Mas o que se quer não é isso: querem inverter a ordem do mundo, tornando o pior superior ao melhor.

Será que as pessoas não conseguem mais reconhecer que pode haver um outro melhor que elas? Que eu, nós, não somos os maiores gênios do mundo e que, na maior parte do tempo, só nos cabe calar a boca e reverenciar quem tem maiores méritos que os nossos? Mas não... todos querem falar ao mesmo tempo, como se todos tivessem todo o conhecimento...

Bem, desculpe pelo longo e confuso comentário. Há leitores aqui que não gostavam quando eu escrevia comentários longos hehehehe.

Ricardo Rayol said...

objetividade, sei ehehehehehe.. post looooongo mas muito bom.

Blogildo said...

Cheguei a esse post através da indicação do William (Bolkonsky espera).
Eu costumo usar a expressão "utilitarismo". Tenho a impressão que no mundo moderno o utilitarismo é a última palavra em tudo. Acho que a expressão "primado da objetividade" acaba incluindo o utilitarismo e me parece mais abrangente e exata.

A moral hoje se resume a "útil e não útil". Certos conceitos que me são caros se tornaram obsoletos, retrógrados e maniqueístas em certos círculos.

Concordo com todo o (longo) comentário do William!
Eu acrescento ao comentário do William que nossa geração ainda se acha melhor, mais sábia e mais completa que todas as gerações anteriores.

patricia m. said...

William, sempre pensei assim, e sempre me atacaram. Se todo mundo estudar para Medicina, nao havera mais lixeiros no mundo? A universidade claramente nao foi feita para todo mundo.

Agora, discordo em um ponto: podemos ate tentar inverter a ordem das coisas, mas o mercado, o bendito mercado, resolve depois. Vide as filas para concurdo de lixeiro no Rio de Janeiro ha uns anos atras. Havia advogados aos montes e alguns outros com curso superior. Pois bem, o mercado eh auto-regulador: os ruins, os burros, os mediocres NAO sobrevivem e acabam pegando empregos que condizem melhor com sua capacidade intelectual.

Ricardo Rayol said...

Tá deu né? Haja preguiça sô.